segunda-feira, 27 de julho de 2009

RAINHA DO NILO (PÁSSAROS DE SANGUE - AS HISTÓRIAS DO VAMPIRO LUCAS)

O edifício todo é uma ruína. Assim como seus moradores. Em especial a dona gorda de seios enormes e flácidos. Pendurados na janela como dois pegajosos balões de ar meio murchos. Os cabelos são tão bem penteados que contrastam com o quadro geral. Usa uma espécie de coroa. As pessoas que passam fingem não notar a loucura que paira sobre nós. Acho muito natural. Todos escondemos nossas loucuras e não gostamos de vê-las penduradas em janelas. Apresso o passo para me livrar daquela visão desagradável.
Não procuro pela diversão que me propõem os letreiros luminosos. Já vi muito nesta vida e sei que neste lugar não há nada de novo. Só o mesmo sexo cansado. Não sobrou nada do charme dessas casas. Hoje as pessoas não têm classe. Cicerones fazendo piadas de mau gosto andando por tapetes de desbotada velhice. Parecem tristes de serem pisados por sapatos tão vulgares. Não há boa música e os batentes das portas precisam de verniz novo. O ar cheira a fumaça, cigarros e perfumes baratos. Os carros são aquelas porcarias sem estilo.
Essa cidade não é mais a mesma. Nem poderia. O tempo passa e as coisas mudam.
- Vamos entrar, senhor? O primeiro drink é por conta da casa!! Meninas de primeira! Você vai gostar...
O homem para de falar imediatamente quando o encaro dentro dos olhos. Afasta-se amedrontado. Deixa cair seus cartões na calçada e não volta para apanhá-los.
Desvio de um líquido pegajoso que vinha do canto escuro da esquina. Era algo muito suspeito. A cidade fede e apodrece num ritmo alucinante.
- Vamos brincar, gatão? Topo qualquer coisa!
- Qualquer coisa mesmo?
Levantei seus cabelos, segurando-os em um coque. Olhei seu colo macio, o pescoço gracioso. Ela achou graça do arrepio.
- Suas mãos são geladas!
Nossos olhares se cruzaram. Vi o medo. Ela encolheu-se tentando se soltar.
-Duvido que você faça o que eu gostaria...
Soltei-a, como quem larga um brinquedo, e segui meu caminho sem olhar para a sombra aterrorizada sob a luz da esquina.
A abstinência me deixa com muita fome. Mas eu preciso ser provocado. Preciso ser seduzido por uma idéia exótica ou pervertida. Precisa haver pecado ou redenção. Preciso de poesia. Estou faminto e sedento de vida vermelha. Sem perceber estou de volta a janela proibida. Entro no prédio decrépito.
Como não pude ver o destino?
Estava tão claro o que me esperava aquela noite.
Impaciente, subi as escadas e bati numa porta clara. Sabia que era o lugar certo pela enfraquecida luz violeta que brotava das frestas.
- Pode entrar, a porta está aberta.
Entrei medindo meus passos. A sala era decorada de uma forma bizarra, mas sob a fraca luz azulada parecia ter uma louca coerência com a dona. Os motivos egípcios se espalhavam pela sala. Estatuetas de gatos em cima da televisão. Imitação de pinturas antigas nas paredes e um trono dourado no lugar do sofá. Percebi imediatamente que era um travesti enorme. As gorduras espremidas pelo corpete branco e a longa saia dourada. No pescoço o colar de Ísis. Pude ver a coroa que ela usava na cabeça. Era uma naja. A loucura do travesti o levou para o Egito antigo. Vestindo a pele de Cleópatra. Aquilo estava melhorando a cada minuto. Eu mal podia conter minha ansiedade, mas tinha que jogar conforme as regras.
- Cleópatra! Rainha do Egito! Deusa do Nilo, eu te saúdo!
- Marco Antônio, meu amor! Porque demoraste tanto?
Os gestos afetados. Tudo tão teatral que me senti em um filme de Fellini. Avancei para o seu pescoço, mordendo avidamente e arrancando um pedaço da carne. O sangue era um caldo grosso e escuro que jorrava das veias partidas. Eu bebia o sangue da Cleópatra andrógina com deleite. Não senti o sabor do medo que em geral minhas vítimas exalam. Senti apenas gratidão. Por alguns instantes transformei seu sonho em realidade. Era como se eu fosse perversamente misericordioso.
- Teu veneno é muito melhor que do que todas as serpentes do Nilo!
Ofereceu-me o pulso num último gesto de amor milenar. Mordi, deliciado com essa pequena pérola. Foi uma troca. A rainha alimentou seus súditos com o seu sacrifício e eu lhe rendi todas as homenagens.
Saí pela janela como um pássaro negro, manchando de sangue à noite.