quarta-feira, 16 de março de 2011

O COMEÇO (PÁSSAROS DE SANGUE - A HISTÓRIA DO VAMPIRO LUCAS 1ª Parte)

Noite

O ano era 1933. Nessa época fugia de tudo. De uma guerra fratricida, das muitas mortes que carregava e de mim mesmo ou da coisa que eu havia me tornado. Ainda não tinha acostumado com minha nova condição sanguinária. As mortes que haviam ficado para trás eram fantasmas que me perseguiam onde quer que eu fosse, provocando pesadelos terríveis com as pessoas queridas que matei em nome da fome insaciável. Tempos difíceis em que acreditava nunca conseguir controlar o mal e a sede que me queimavam e me tornavam irracional. Sentia-me um desterrado em minha própria terra e procurei abrigo e fuga no interior de uma floresta. Jurei que nunca mais mataria outro ser humano. Passei a viver do sangue de animais que caçava durante a noite. Demorei para me adaptar ao novo tipo de alimento, vomitava constantemente e sentia uma fraqueza estranha, como se definhasse a cada dia. A falta de sangue estava me ressecando como uma planta sem água. Aquela dieta teria me destruído se o destino ou um estranho senso de direção que adquiri após minha primeira morte, não mostrasse a realidade cruel da minha nova natureza.

Era noite sem lua, ideal para a caça de pequenos animais noturnos ou, com sorte, um bezerro desgarrado. Andava pelos matos em andrajos, como um animal e me sentia como tal. Avistei a velha casa de pedra em uma clareira na floresta. Não havia nenhuma estrada ou picada que levasse diretamente aquele lugar. A antiga casa colonial parecia abandonada, suas velhas janelas permaneciam cerradas, a caiação estava descascada, tudo precisava de uma restauração urgente.
Meu primeiro impulso foi fugir dali. Poderiam morar humanos e minha fraqueza pelo sangue humano não conhecia limites. Alguma coisa inexplicável controlava meus passos. Me atraia para a clareira e para a casa. Era como voltar a um lar que nunca tive. Lembrando da história tempos depois imagino a casa como um ser vivo e pulsante, me chamando para seu interior escuro, úmido e acolhedor. Lentamente fui me aproximando, esquecido da fome, atravessei a sacada que contornava a casa e parei ante a porta de folha dupla. Desenhos estranhos estavam entalhados na madeira nobre contando uma história muito parecida com a minha. Uma história de humanos que se transformavam em animais e atacavam outros seres humanos. O final dos desenhos era terrível, os animais eram perseguidos e empalados pelos humanos e depois queimados em fogueiras. Uma expressão de agonia estampavam-se naqueles rostos desfigurados que pareciam ora morcegos ora lobos de caninos afiados. Não estava muito confortável com aquela história. Também não conseguia tirar os olhos daqueles tristes entalhes até que a madeira pesada rangeu nas dobradiças quando a empurrei.

Ao entrar naquela sala voltei 200 anos no tempo. Móveis robustos do século dezoito, muitas velas apagadas nos candelabros e no lustre antiquíssimo. A sala ampla com sofás e divãs de estofados rotos pela ação do tempo e das traças. Caminhei pelos tapetes que ainda preservavam muito da sua dignidade oriental. Um piano negro era a única peça que não acumulara pó. Alguém ali cuidava muito bem daquele magistral instrumento. Imaginei sua sonoridade ancestral. Fazia muito tempo que não ouvia música e olhando para o piano senti uma nostalgia que quase poderia se chamar dor. Fiquei tentado a tocar suas teclas. Não o fiz, não tinha idéia do que me aguardava naquela casa e não quis adiantar nenhum encontro. Atravessei uma ampla passagem em forma de arco que me levava a uma galeria de quadros apavorantes. Mesmo sem luz alguma eu podia ver como se fosse dia claro e o que vi podia assustar até um monstro como eu. Os retratos em tamanho natural de uma família aparentemente normal. O estranho era a maldade que exalavam aqueles rostos. O quadro que estava numa posição de destaque era de um jovem senhor de feições muito másculas. Um lustroso bigode sob o nariz aquilino dava-lhe um ar ao mesmo tempo selvagem e sedutor. Seus olhos eram terríveis. Nada poderia escapar-lhe, me lembrou uma águia. Sua postura era majestosa e arrogante própria de quem nada tem a temer. Perdi a noção do tempo naquela galeria macabra. Os quadros olhavam para mim e zombavam da condição a que me reduzi. Principalmente o majestoso quadro principal. Tenho certeza que ele estaria rindo se pudesse. Senti-me diminuído ante tantas figuras notáveis e assustadoras. Só notei a presença daquelas duas pessoas quando meus pensamentos foram interrompidos: “Você não acha que devemos preservar a memória de nossos antepassados?”
Se eu tivesse um coração teria se congelado ali mesmo. Um rapaz e uma mulher um pouco mais velha apareceram ao meu lado sem fazer ruído algum. Trajados como se fossem a uma festa elegante os dois me olhavam com complacência.
“Está é a galeria de meus parentes próximos e outros membros ilustres da família, hoje mortos. Dessa nobreza só restamos minha irmã e eu perdidos nesse fim de mundo.”
Fazia tempo que eu não conversava com ninguém e meu cérebro parecia um tanto atrofiado e o sotaque estranho do rapaz não ajudava a minha concentração. Não consegui dizer palavra alguma aquele desconhecido tão familiar.
“Na verdade estávamos esperando por você. Todos os sinais apontavam para sua direção e seu instinto não falhou em trazer-te até aqui”, meu anfitrião continuou a falar me deixando ainda mais confuso. Foi quando sua irmã correu em meu socorro: “Perdoe meu irmão!”, sorriu-me a jovem senhora e olhando com uma doce severidade para oirmão continuou, “há tempos não conversamos com ninguém e nos portamos mal! Você deve estar faminto e precisando de banho e roupas limpas. Podemos conversar depois, temos a noite inteira para isso!”
Estendeu-me sua mão fina como seda: “Primeiro as apresentações. Eu sou Bárbara e esse tagarela é meu irmão Herman.”
“Lucas...”, respondi desajeitadamente apertando sua mão fria, “...me perdoem!! Há muito que não falo com pessoas.”
Meus anfitriões riram prazeirosamente do meu esforço para voltar a falar. “Há tanto que você não sabe!! Há tanto por aprender!!”, disse-me Herman, “mas por hora vamos transformar você em alguma coisa apresentável para o jantar.”

Não sei por que me deixei levar. Talvez o cansaço e a fraqueza não me deixassem alternativas. Hoje relembro que eles me inspiravam confiança, um quase afeto. Imagine aquelas pessoas ali. Membros de uma nobreza decadente que se exilou longe de todos os seus entes queridos. Eles se pareciam muito comigo.
Bárbara me deu roupas antigas, muito limpas. Preparou-me o banho ela mesma jogando a água em uma banheira muito antiga de louça escura e pés dourados. Despiu-me cuidadosamente olhando as marcas que o tempo passado na floresta deixou em meu corpo, deliciando-se com minhas cicatrizes conquistadas durante a revolução. Tirou suas roupas mostrando um corpo esbelto e alvíssimo que destacava a boca vermelha, os cabelos e a púbis muito negras. Perdi algum tempo imerso na água morna, envolto no aroma dos sais enquanto ela massageava com mãos hábeis meu corpo maltratado. O cansaço foi dando lugar a uma enorme excitação, durante muito tempo eu esqueci que também era um homem. A possuí e fui possuído ali mesmo. Ela era muito versada na arte do amor e eu apenas um aprendiz. Não tinha a menor noção da força que os vampiros podem ter, muito menos nosso poder sexual intenso. Bárbara me falava sobre isso e como eu iria aprender com ela. Me sussurava, também, coisas sobre terríveis orgias sangrentas que me excitavam ainda mais. Me assustava gostar de ouvir coisas tão abomináveis a ainda querer mais e mais. Me fez mordê-la para sentir o poder de seu sangue negro misturado a um orgasmo, um prazer inimaginável.
Limpou o sangue que escorria da minha boca com um beijo e foi até o espelho. Pegou uma navalha, se colocou atrás de mim. Por um momento pensei que fosse meu fim. Engano começou a fazer minha barba com delicadeza, dizendo que era muito difícil para os vampiros se barbearem corretamente já que não são refletidos no espelho. A lâmina praticamente acariciava minha pele muito branca e sensível. Já fazia algum tempo que passei a não tolerar o sol. Feriu-me o rosto. Um pequeno corte na fronte esquerda de onde escorreu um pouco de sangue negro. Ela beijou-me a ferida e lambeu o sangue. Mostrou-me seus caninos e sussurrou: “Vista-se! O sexo nos dá um prazer maravilhoso, porém nos enfraquece muito! Precisamos nos alimentar.” Saiu da sala lânguida. Ainda lambendo o resto de sangue no canto dos lábios muito vermelhos.
Mais de setenta anos se passaram e ainda me lembro de cada detalhe daquela noite especial como se tivesse acontecido ontem. O jogo de sedução a que fui submetido. E o prazer intenso e o aprendizado que aquela vampira me proporcionava.

Quando voltei a sala de jantar me sentia um outro homem.
“Bárbara você realmente faz milagres!!”, disse Herman com um sorriso malicioso e os caninos a mostra. “Ele parece um outro homem!”. Voltando-se para mim: “Os humanos não satisfazem plenamente uma vampira e faz muito tempo que ela não via outro vampiro que não esse que vos fala...”. Lancei para Bárbara um olhar cheio de interrogações que ela respondeu: “Tudo a seu tempo!”
Foi à outra sala e voltou com nossa ceia. Uma menina metida nos seus trajes de dormir em estado de choque, apavorada demais até para gritar. Primeiro a despiram e quando percebi o que pretendiam tentei protestar. Os braços magros de Herman pareciam correntes e não me deixavam movimentos. Em segundos era tarde demais. As unhas afiadas de Bárbara cortaram a jugular da pobre. Eu via nos olhos da menina que ela sabia o seu destino e pude sentir todo o medo. Aquilo também era bom. Descobri que o medo acentuava o gosto do sangue, ao contrário das carnes que endureciam com esse tipo de sentimento. Ao ver o líquido vermelho escorrer perdi completamente o controle. Saltamos os três sobre aquele corpo frágil e a mordemos sugando todo o seu sangue.
Bárbara me mostrou onde morder a veia na virilha e sentir uma mistura de sangue e sexo. Herman gostava de pulsos e da dobra do braço, lugares que se encaixavam perfeitamente em sua boca. A cena era bizarra. Eu havia me transformado em um monstro. O cheiro de sangue aguçava uma fome insaciável e terrível que enlouquecia e só o líquido precioso poderia aplacar.
Sentamos por um momento, embriagados de sangue. Só então notei o quanto eu havia me enfraquecido sem o alimento necessário. Creio que se não tivesse encontrado aqueles dois eu teria perecido na floresta.
Herman foi o primeiro a se levantar. Tomou o corpo sem vida da menina como uma boneca velha e sumiu dentro da casa. Bárbara pegou minha mão e levou-me a sala. Sentou-se ao piano e começou a tocar divinamente. Era um tema de Smetana sobre o rio Moldava, belíssima canção que soava como saudades de casa. Ouvia a música podendo imaginar o grande rio cortando Praga e seguindo seu caminho pelo interior da Boêmia. O outro vampiro voltou e, em silencioso respeito, ouviu a linda canção até o final. Ouvia e via a música em suas várias partes. A história do grande rio cruzando seu caminho. Ora violento, ora tranqüilo. O nascer do sol nas suas margens e a noite chegando com seus murmúrios. As pessoas e a vida que se desenvolve em redor das suas águas. A festa de um casamento, a luz do sol dourando a calmaria das correntes.
As últimas notas e os harmônicos soavam pela casa enquanto permanecíamos de olhos fechados agarrados aquele momento de êxtase e querendo que ele durasse para sempre. Mas o sempre de um vampiro é tempo demais. Bárbara nos tirou do transe: “Nenhum outro compositor me faz tão feliz e tão triste como esse!”, continuou o seu monólogo como se nós não estivéssemos ali. “Feliz por me fazer lembrar da minha terra natal...e triste por estar distante a tanto tempo!”.
levantou-se do piano e foi sentar-se ao lado do irmão. Deram-se as mãos como dois namorados apaixonados e Bárbara me contou como Herman e ela chegaram até ali, tão longe de casa.
“Nós não somos vampiros como você, Lucas.” Começou o seu impressionante relato. “Fomos transformados pela magia dos livros de Abremelin.” Ante o meu espanto continuou. “Um mago negro chamado Eleazar chegou a Hungria no final do século quinze e de uma forma muito envolvente caiu nas graças do imperador Segismundo. Ele vinha de Veneza, mas foi no Egito que recebeu a orientação do próprio Abremelin para escrever o livro negro de Osíris, o deus dos mortos. Esses ensinamentos davam o poder de ressuscitar os mortos através de magia. Em Veneza Eleazar havia criado a primeira casta de vampiros na Europa. Mas na Hungria ele era conselheiro do próprio imperador e teve força política para criar a Ordem do Dragão. A maioria dos príncipes guerreiros do leste europeu entraram na ordem com a intenção de fortalecimentos político e bélico para combater os otomanos que povoavam as fronteiras e ameaçavam toda a cristandade.”
Eu ouvia tudo aquilo incrédulo mas fascinado. “Você está falando que os imperadores e príncipes cristãos estavam envolvidos com magia negra?”, perguntei envolvido com sua narração.
“O mundo mudou muito. Naquele tempo pertencer ao círculo de magia, assim como ser vampiro misturavam-se ao título de nobreza. Não era possível pensar em um nobre realmente nobre que não fosse das ordens do dragão ou da ave negra, e ambas eram fundamentadas na magia negra. Minha família, os Dráculas, os Bathorys e tantos outros eram membros das suas linhas e defendiam a cristandade com a força que o resto da Europa desconhecia. Foram essas pessoas que mantiveram o império turco na fronteira durante tanto tempo, mesmo com exércitos menores e menos equipados.”  continuou  “Herman e eu, nessa época, agíamos como duas crianças apaixonadas. O casamento entre parentes era muito comum e nós vivíamos nosso romance sem perceber as implicações disso.”
“Pouco tempo depois”, interrompeu Herman, “fui combater os turcos. A batalha estava perdida e eu caíra nas mãos dos inimigos quando Segismundo apareceu e me tirou das mãos da morte”.
“Ainda não éramos mortais.”, continuou. “Para mostrar meu agradecimento dei a mão de minha irmã como esposa para o imperador. Ela era a jovem mais bela da Europa e não poderia existir presente maior.”
“Claro que junto comigo iria um grande feudo muito cobiçado por todos”, Bárbara disse em tom de censura e continuou, “mas eu era muito jovem para entender o mundo masculino do poder. Sei que Segismundo me amava muito mas me senti traída pelo meu próprio irmão e me envenenei.”
“Bárbara teve um enterro magnífico em Gráz na alta Síria mas o imperador a amava tanto que usou os conhecimentos de Eleazar e seu livro para ressuscitá-la! Com a desculpa de transportar os restos mortais da amada para o castelo de Varazdin, ele conseguiu realizar os rituais em segredo.”, emendou Herman. Era uma história inacreditável. Aquela situação era completamente surreal. “Segismundo me ressuscitou para logo depois morrer, deixando ordens expressas para ninguém tentar tirá-lo do seu sono eterno. Ele viu o que seu amor fez comigo e não se perdoou jamais.”
“Então vocês foram transformados em vampiros através da magia e não do sangue?”, perguntei incrédulo.
“Não, somente a Bárbara e alguns nobres. Ainda não conhecíamos os efeitos da ressurreição e nem sabíamos que com ela viria a doença e a maldição. Bárbara foi acometida pela fome e tomou meu sangue, vendo que eu iria morrer ela cortou seus pulsos e me deu para beber também. Foi assim que começamos a descobrir juntos o mundo dos mortos que andam”.
“No começo tudo era uma imensa e boa novidade...”, Bárbara falava de olhos fechados como se deleitando com a s lembranças, “...éramos nobres e estávamos acima da lei, do bem e do mal. Podíamos nos abastecer de quanto sangue plebeu quiséssemos sem sermos incomodados.”
“Até que uma outra nobre também vampira resolveu atrair para suas orgias outros nobres. Uma parente distante da nossa família chamada Erzsébet Bathory. Por um tempo fora contida pelo seu marido chamado de Herói Negro devido a sua armadura, mas quando ele morreu a viúva se viu livre para todas as atrocidades. Matou mais de 600 pessoas e alguns nobres foram evolvidos quando o rei Mathias II cansou-se de protegê-la e mandou um outro nobre também vampiro para livrar-se do caso.”
“Quem foi encarregado de parar os desmandos da Condessa Bathory”, concluiu Bárbara, “...foi o terrível Conde Thurzo.” Ao ouvir esse nome dei um pulo da cadeira como se fosse um boneco de mola. “Você disse Conde Thurzo?”, perguntei afobadamente. “Conde Thurzo, conhecido entre nós como o vampiro carrasco. Ele era incumbido de acabar com os da própria raça. Um pária entre os mortos!”.
Joguei-me de volta a cadeira pesadamente, repetindo como louco: “Conde Thurzo, não pode ser!!” (continua...)

sábado, 12 de setembro de 2009

DOIS (PÁSSAROS DE SANGUE - AS HISTÓRIAS DO VAMPIRO LUCAS)

A madrugada trazia um sereno que gelaria uma pessoa até os ossos. Já não sou uma pessoa. Pelo menos não uma pessoa comum. Sou bem menos que isso. Nem a fina garoa nem a insônia me incomodam. O que me atormenta é a fome. Uma fome que vem com a mudança da lua. Nesses dias é quase impossível me controlar.
Ando pelas ruas sujas. Procuro por alguma alma infeliz. Meus olhos só vêem vermelho. As vítimas mais fáceis são as prostitutas. Ninguém perde tempo investigando a morte de uma puta ou de um travesti. Na verdade eu sou o menor dos problemas para eles. A cidade está cheia de outros vampiros ─ bem mais famintos ─ na pele de policiais corruptos, traficantes, gigolôs inescrupulosos, clientes violentos, assaltantes desesperados pela falta de crack, aids. Sou minoria nessa lista.
Quem acha que a vida dessas pessoas é cheia de glamour precisava dar uma volta comigo e conhecer algumas amigas. Já é bastante duro sem o frio. Não pense que sinto pena. Muito pelo contrário. Cada um faz suas escolhas.
Nenhuma profissão cobra um preço tão alto como essa. Não estou falando daquelas que nasceram com sorte. Estou falando da grande maioria que tem que se virar para não morrer de fome, não ser despejada e outras delícias que só uma cidade grande pode proporcionar.
Meus pensamentos ajudam a dominar a fome. Avalio meticulosamente minhas prováveis presas. Quando estou assim não consigo pensar em sexo só em sangue. Um sangue gasto e envenenado mas ainda assim saboroso. Vendo por esse lado o vírus transmitido pelo sangue não amedronta. Mesmo para a doença mais letal é difícil matar o que já está morto.
A chuva aumenta. Nas ruas só ficaram os muitos miseráveis que moram nos lugares mais improváveis. Pontes, caixotes, cantos, becos, marquises, qualquer lugar transforma-se em uma cínica caricatura de lar. A cidade é a grande prostituta. Queria poder arrancar-lhe a jugular e matá-la. É como um ser vivo que respira e se alimenta. Um ser amoral mas muito poderoso. Poder, luxuria e dinheiro. Mas ao mesmo tempo é o meu lugar. Onde eu me sinto em casa. Onde eu gosto de viver.
─ O cavalheiro não gostaria de entrar. Tenho um petisco interessante para alguém de classe...
Não sei se foi o jeito de falar ou um certo ar irônico que me fez parar e entrar por aquela porta. Nada dentro daquele lugar me faria ficar impressionado. Muito menos o tal petisco. Foi o instinto. E, junto com a fome, tornaram o convite irresistível.
Acompanhei o estranho senhor por um longo corredor.
─ Antes de entrar por essa porta gostaria de acertar alguns detalhes com o cavalheiro... ─ Tirei um punhado de notas do bolso.
─ Isso deve bastar para os detalhes...
─ Como eu imaginava. Um cavalheiro muito generoso!
─ Espero que eu realmente goste.
─ Nunca houve reclamações de nossos entretenimentos. ─ Abriu uma porta que dava para uma sala vazia e redonda que dava para outras portas.
─ Escolha uma única porta e entre. ─ Sorriu com dentes pontiagudos.
Sabia que tinha alguma coisa errada. O pequeno demônio sabia do que eu precisava e trocou por dinheiro. Até as hostes do inferno estavam ficando decadentes. Também o que mais ele poderia querer de mim? Nem alma eu possuo mais.
Pousei minha mão em uma das maçanetas e abri a porta vagarosamente. Duas crianças sentadas uma em cada lado da cama. Estavam nuas e quando me aproximei notei que eram um casal de gêmeos. Me olhavam com a indiferença de quem não tem mais nada a perder.
─ Nos disseram que nosso cliente hoje seria especial. Você não parece especial. ─ Me falou o menino com uma segurança que contrastava com sua delicada tez branca.
─ Não fala assim com ele! Lembra do último que você irritou?
─ Por mim tudo bem... ─ Interrompi o diálogo fazendo com que se calassem.
─ Ninguém conta nada pra gente...- disse a menina um tanto angelical ─ Só que você era especial e depois não precisaríamos mais fazer coisas feias com ninguém!
Me aproximei dos dois e observei a beleza daquelas alvas criaturas.
─ O sangue de vocês será meu alimento.
─ Não entendi...
─ Sua boba não tá vendo que o cara é um tarado maníaco assassino!! É por isso que nós não vamos mais precisar trabalhar ele vai acabar com a gente!
Ela lançou um olhar febril de puro excitamento. Toda aquela fragilidade não passava de uma casca de sedução. Os dois já estavam corrompidos. Não existe alma que fique tanto tempo perto dos demônios que não apodreça.
─ Você vai matar a gente?
─ É claro que vai!! Olha a cara dele!
─ Exatamente... ─ Comecei a me aproximar. Não senti o medo, mas uma outra forma de prazer.
─ Você vai se aproveitar da gente antes?
─ Por que eu me aproveitaria se estou com fome?
─ Como assim fome? ─ perguntou a incrédula menina.
─ Que horror!! O cara é um canibal!
─ Não... Comprei o sangue de vocês!! ─ Queria dar um fim naquela conversa surreal!
─ Então você vai morder o meu pescoço!
─ Só o seu não!! O meu também!! Merda...
─ Você não vai atender a um último pedido da gente?
─ Ela tem razão nós nunca fizemos isso com um... vampiro... se é que você é um vampiro mesmo!
─ O que vocês poderiam querer de mim?
─ Você faz sexo?
─ Ficou louca? ─ Gritou o garoto ─ O cara quer matar e tomar o meu sangue e você ainda quer trepar com ele?
─ Você dois vão fazer comigo!! Se é minha última vez que seja muito boa!
O garoto balançava a cabeça de um lado para o outro. Discordava da irmã mas era completamente dominado por uma estranha força que a menina emanava.
─ E quando eu estiver chegando ao fim você me morde!! Quero sentir o prazer e a dor ao mesmo tempo! Orgasmo e morte!!
Fiquei imaginando quantos anos aquela menina teria e o quanto ela já havia passado para chegar a esse tipo de conclusão.
Era uma chance tentadora. Mesmo para mim aquela era uma oportunidade rara.
Controlei a fome e me entreguei ao estranho prazer daqueles gêmeos. Deixei que línguas percorressem meu corpo. Percorri os dois corpos com língua e dentes. Penetrei naqueles corpos imberbes e me deixei penetrar por eles.
Não suportando mais mordi o pescoço do menino que não teve tempo de gritar. A gêmea encarou meu rosto manchada de vermelho e sorriu para mim . Alisou o corpo do irmão.
─ Pobrezinho...Ele não entende que só assim a gente podia fugir!
─ Você o amava?
─ Como só dois gêmeos poderiam... Por favor, agora é a minha vez! Venha!
Penetrei novamente em seu corpo e aguardei a ordem que ela daria quando estivesse pronta. Pouco antes do orgasmo eu mordi. O sangue e sexo. Foi como se eu estivesse tirando sua virgindade. O que de certa forma poderia estar acontecendo.
O gosto metálico e um pouco adocicado do seu sangue foi uma das coisas mais deliciosas que provei. Mordi seu sexo também para extrair dele um novo sabor. Era boa aquela mistura dos nossos corpos com sangue.
Minhas mãos e meu rosto eram de um vermelho vivo e brilhante.
Olhei aquelas duas lindas criaturas que se misturavam dentro do vermelho vivo do sangue fresco.
Sai do quarto e não encontrei mais o velho porteiro. Já esperava isso. Apenas toalhas brancas e limpas. Uma bacia de água. Lavei o sangue de meu corpo e, saciado, encontrei a noite se despedindo. Tinha que me apressar para chegar em casa antes do sol.

quarta-feira, 26 de agosto de 2009

AMOR E SANGUE (PÁSSAROS DE SANGUE - AS HISTÓRIAS DO VAMPIRO LUCAS)

Logo que entrei na festa pude sentir o seu cheiro. Fazia muito tempo que não me encontrava com outro. Esse tinha um odor adocicado de putrefação, uma suave podridão.
Já estava me preparando para sair. Não gosto de encontrar predadores noturnos. Foi a curiosidade, esse pecado que me faz sentir um pouco a minha humanidade perdida, que me prendeu aquele lugar.
Desvio meu olhar das pessoas. O cheiro esta mais forte. Passo por duas garotas que dançam sem tirar os olhos uma da outra. Uma delas é quem procuro. Não consigo identificar qual das duas. Talvez as duas.
Não sei direito o que fazer. Parecem tão lindas e felizes dançando.
Que direito tenho eu de entrar na vida dessas duas pessoas e a transformar num inferno maior do que elas já estão? ─ Me perguntava já sabendo a resposta. Estava fascinado. Seduzido por uma onda de amor que aquelas duas estranhas criaturas emanavam.
Sei que os demônios noturnos podem seduzir como mágicos. Conhecemos as fraquezas dos homens e possuímos os instintos necessários para dominar. Aquilo podia estar acontecendo e eu sabia, por experiência própria, que não seria bom para nenhuma das duas.
O que me fez realmente agir? Não consigo revelar nem a mim mesmo. Seria minha vontade de mudar o rumo de uma tragédia ou simplesmente a inveja de ver um ser da noite encontrar a felicidade enquanto eu vivo na solidão?
Comecei a dançar com as duas. Como já disse um vampiro sabe seduzir quando quer. Os olhos não se desviavam e nossas bocas e rostos se roçavam. Suas mãos deslizavam por meu corpo. O estranho prazer do toque desconhecido. Eu era apenas um brinquedo. E do que mais eu precisava?
Cris e Andréa. Estavam vivendo o melhor momento de suas vidas. Experimentando o amor e tantas outras coisas. Elas tinham um gosto especial por novidades e se soltavam no mundo. Pessoas especiais num mundo de medíocres. Tudo seria perfeito se uma delas não fosse uma imortal amaldiçoada.
Cris era doce e de olhar límpido. Tinha dezesseis anos e muita convicção. Nos atos parecia mais velha que Andréa que tinha dez anos a mais. Uma mulher bonita e carente. Creio que até Cris aparecer na sua vida devia ser alguém completamente perdida e entediada.
Andréa levantou-se para buscar mais alguma coisa para beber. Cris a olhou muito séria.
─ É o último... Prometo...
Ela se misturou com a multidão. Era a chance que eu esperava.
─ Deixa a garota beber! Você controla demais...
─ Você não conhece a Andréa! Ela bebia demais, se drogava demais e fazia besteira demais! Só estou tentando ajudá-la a colocar a vida no lugar.
─ Mas você não é muito nova para se envolver tanto com alguém?
─ E o amor tem idade? As coisas não são bem o que parecem...
─ Sei muito bem do que você esta falando.
─ Não, você não sabe!
─ Cris, eu sei muito mais do que você imagina...
A fisionomia da menina mudou radicalmente. Ela estava tensa. Podia vê-la lutando e procurando respostas nos seus sentidos. E a conversa tomou um rumo que eu não esperava.
─ O que você pretende? ─ Indagou-me Cris com um olhar feroz. Era uma loba defendendo seu território. Farejei o perigo iminente. Tentei contornar a situação e não me revelar.
─ Do que você está falando?
─ Não sei muito bem o que você é, mas não estou gostando! Então pare de brincar e me diga o que você quer!
─ Deixe-a partir!
─ O quê?
─ Você me ouviu. Liberte a Andréa! O que você está fazendo é perigoso para as duas.
─ Quem você pensa que é?
─ Você sabe que eu sou...
─ Seu estúpido arrogante! O que você sabe de minha vida! Não pode fazer isso comigo! Não pode querer tomar as minhas decisões!
─ Cala a boca! Você não sabe o que esta falando! ─ Gritei maldizendo minha presença ali. Não podia e não devia estar ali. Não era problema meu. A mágica do desejo foi rompida.
Não percebemos que Andréa já tinha voltado e nos olhava assustada.
─ Diga a ela! Conte tudo! Diga o que você é! Conte a ela dos pesadelos! Das vozes que você ouve e da fome! Vamos diga!
Andréa parecia ter dormido e entrado em um pesadelo.
─ Quem ele é, Cris?
─ Alguém como eu. Pode falar, ele sabe...
─ Ela me contou tudo. O que você está falando é verdade... A Cris tem se controlado...Nós nos protegemos dos outros e ela toma conta de mim!
Fiquei aturdido. Elas sabiam de tudo e conviviam com um segredo assustador.
─ Vocês são loucas! Sabem que não vão poder ficar juntas muito tempo!
─ Cada dia que passa me sinto menos humana!
─ Cris, me escute. Vai levar anos! Talvez séculos para você aprender a se controlar, enquanto isso o seu rastro será de ódio e destruição. Nós acabamos matando todos que amamos, isso aconteceu comigo. Mas o pior é quando aprendemos a nos controlar. Por que então enterramos todos que amamos até não sobrar nada. Só sangue e solidão.
Quem eu achava que era para separá-las assim? ─ Que merda eu estava fazendo. Minha vontade era ficar ali com as duas e me alimentar do seu amor. Uma outra forma de vampirismo.
─ Ele tem razão! Vá embora! Eu te amo demais pra te fazer mal!
─ Não!!! Eu não posso te perder! ─ As lágrimas corriam daquele rosto adorável enquanto Andréa abraçava sua amiga. Me senti um intruso.
─ Como eu vou viver sem você? Se é assim acabe logo com isso! Me faça alguém como você e assim nos amaremos para sempre!
─ Você não ouviu o que eu disse? Afastou-a segurando carinhosamente seu ombro. ─ Cada dia eu perco um pouco da minha humanidade. É o meu amor por você que me faz suportar as vozes e os pesadelos. Não resistirei por muito tempo. Imagine nós duas assim. O amor é humano, eu não!
─ Eu te darei forças! Nós venceremos...
Virou-se para mim e começou a me bater. Deixei que ela se acalmasse. Abracei-a e sussurrei no seu ouvido.
─ Pense nisso como uma doença. ─ Falava carinhosamente, como quem tenta explicar o inexplicável para uma criança. ─ Nós sofremos de um mal e nada pode nos salvar a não ser a luz do sol.
Afastou-se de mim. Olhou profundamente para nós dois.
─ Não adianta! A decisão já esta tomada. Vou ficar... Quando ela não puder controlar sua fome darei meu sangue até a última gota e ela vai sentir apenas o gosto do perdão e do meu amor.
─ Andréa...
─ Posso morrer por você mas ele tem razão, não posso viver uma vida que na verdade é pior que a morte! Prometa não me envenenar! Não quero ser como vocês!
Nunca mais vi as duas. Desapareci enquanto se beijavam. Será que o amor pode sobreviver a morte?
Sei muito bem como essa história termina. Alguém se sacrifica por seu amor e parte dessa vida. Para quem fica resta a solidão, o desespero e uma fome insana. Por fim o desprezo que todo ser da noite tem pela humanidade e uma eternidade para expiar os pecados.

quinta-feira, 20 de agosto de 2009

O TEMPO E A FUTILIDADE (PÁSSAROS DE SANGUE - AS HISTÓRIAS DO VAMPIRO LUCAS)

Há certas coisas que só uma cidade grande pode proporcionar. Um manto de asfalto que encobre as perversidades. Os crimes ficam sem solução. Um ser como eu pode se alimentar e se preocupar apenas com sua consciência. Ninguém perde tempo acreditando em vampiros com tantas outras coisas para se preocupar. A maldade anda solta na forma de homens comuns. Os seres da noite são reservados para os cantos escuros dos sonhos inofensivos.
Outra vantagem é que, até para um vampiro frugal com eu, a comida é farta e variada. Sempre se pode arrumar um pescoço ou um romance. Nunca as duas coisas. Nunca mato o que gosto. Mulheres interessantes, pessoas inteligentes, espíritos cativantes me dão maior prazer quando vivos.
Não é o caso dessa petulante moça que está ao meu lado e não parou de falar. Creio que vou ter uma indigestão ao morder tão verborrágica garganta. Ela parecia magnífica fazendo o show de striptease. Tão maravilhosa que eu só queria uma noite de amor e agora só quero matá-la. Uma megera de corpo bonito não vai fazer a mínima falta.
─ Vamos para o quarto! ─ Dizia e se esfregava como uma gata no cio. Você vai ver do que eu sou capaz...
Me desvencilhei de seu abraço de víbora. Na sacada pude respirar e minha sanidade foi voltando. O luar clareou meus pensamentos. Existia um castigo muito maior para a futilidade dessa mulher. Entrei no jogo:
─ Não posso! Não posso!! ─ Falava e balançava a cabeça como se alguma coisa me perturbasse.
─ Benzinho, você está com algum problema? Não há nada que eu não possa resolver!
Era o ápice da falsidade! O tom, o jeito de falar, tudo respirava vulgaridade.
─ Sofro de um mal incurável! ─ Falei olhando em seus olhos. Ela se afastou até uma distancia segura.
─ Você... Você não está com aids, está? ─ Olhou-me cheia de pavor.
─ Não, querida! É outro tipo de doença do sangue! ─ Provoquei uma pequena metamorfose que é muito mais um truque de sugestão. Meus olhos exalaram a maldade e se avermelharam e os caninos cresceram. Tudo muito parecido com os charmosos vampiros do cinema.
─ Você é um vampiro!! Um vampiro de verdade!! ─ Ela quase bateu palmas de contentamento.
Continuei com o teatro. A presa havia mordido a isca.
─ Não acredito!! Se meus olhos não...
─ Entende, agora por que não posso ir a lugar nenhum com você? Meu coração é uma fera pronta pra devorar o sangue de qualquer um!! E não quero que isso aconteça com você!
Me senti um perfeito canastrão. Como alguém podia acreditar em todas essas besteiras?
Ela aproximou o pescoço da minha boca e suplicou, quase num sussurro, que eu a mordesse e lhe desse a vida eterna. Imagine ficar eternamente jovem e linda!
─ Eternamente arrogante e vulgar! O mundo não precisa de mais
gente assim!
─ Como assim... Vulgar? Eu?
Indignação era o menor dos adjetivos! Mas até a sua fúria era frívola. Começou a gritar que iria falar para todos o monstro que eu era. Realmente, ninguém levaria a sério essa história de vampiro. Pensando bem, no sentido figurado até que ela tinha uma certa razão. Todos nós somos vampiros em determinadas ocasiões. O mundo está cheio de vampiros mais perigosos e mais famintos do que eu.
─ Pode falar o que você quiser! Só aumentará sua fama de infeliz...
─ Como pode haver alguém tão cruel?
─ Não sou pior nem melhor que você. Sofro de um mal que não me deixa envelhecer e você sofre do mal de envelhecer. Por ser essa pessoa superficial que você é não haverá dignidade nenhuma no passar dos anos, ao contrário só mostrará sua decadência e a patética luta contra a idade! ─ Continuei a hipócrita lição de moral. ─ Minha cara, o tempo pode ser invencível se você torná-lo seu inimigo.
O sermão fazia parte do jogo que já estava me saturando. A presa não oferecia a menor resistência. Muito pelo contrário, estava agora dramatizando. As lágrimas corriam estudadas e fartas pelo rosto, manchando a maquiagem.
Ganhei as ruas. Aparentava um pouco de pressa e afobação, mas nem tanto.
Não precisei esperar muito para ouvir o som dos saltos e o perfume caro me seguindo.
Depois a mesma velha história.
─ Por favor... Me transforme em alguém como você! Eu vou fazer trinta anos... Você sabe o que é fazer trinta anos pra uma mulher como eu? Não!! Você, não!!! Vai ficar aí com essa cara sem rugas por toda a eternidade! Você não sabe o que é ficar velho!! Eu não sei fazer mais nada e meu corpo não vai durar... preciso da eternidade! Faço o que você quiser!
Afinal ela tinha consciência das suas limitações ou estaria só tentando equilibrar jogo?
Nunca vou saber. Minha ira estava no ápice e explodiu. Arranquei sua roupa rasgando seu vestido. A possui ali mesmo, gemia debruçada sobre o capô do carro enquanto a segurava pelos cabelos e a penetrava com força e maldade.
─ Olhe para o seu rosto! ─ Eu a torturava fazendo com que ela se visse com a maquiagem borrada no vidro do carro! ─ Pensa na sua vida!! Você acha que os homens vão querer trepar com você pra sempre?
A penetrei por trás com violência e novamente arranquei lágrimas, desta vez de dor. Não gritou, mordia a própria mão até sangrar.
Deixei-a sobre o carro. Sumi na penumbra antes que ela pudesse se recuperar. Esse era o seu castigo! Eu acenei com a vida eterna e a condenei a envelhecer e ver sua própria imagem no espelho decaindo dia após dia.
Me senti cruel por ter me deixado levar por um prazer tão mesquinho. O que eu era senão um animal nojento, rastejando noite após noite atrás da minha vida perdida?
Bebi a taça de um vinho venenoso e amargo. A eternidade não me deu a sabedoria para poder perdoar e aprender a ter compaixão.
Eu estava enganado, nós não somos iguais. Eu sou muito pior.
Um dia sua agonia vai terminar, minha cara. Quanto a mim, não passo de um pássaro eterno manchado de sangue e de pecado.

sexta-feira, 14 de agosto de 2009

A FILHA DO MAR (PÁSSAROS DE SANGUE - AS HISTÓRIAS DO VAMPIRO LUCAS)

O mar se misturava com a noite no horizonte. A lua esparramava prata sobre sua superfície encrespada pelas poucas ondas de espuma branca. Apenas minha presença maculava a beleza daquela praia. Parei para admirar o oceano profundo e a moça morena que brincava em suas pequeninas ondas. Ela cantava docemente para sua mãe no mar. Iemanjá aquietava o mundo para ouvir sua filha. O vestido branco parecia feito de ondas que a brisa agitava levemente. Se agachava cantando e apanhando um pouquinho de água que escorria pelos seus braços morenos.
Esperei ela acabar e me aproximei. Me surpreendeu sua serenidade ao me ver.
─ Para quem você cantava?
─ Para a rainha do mar... - Me falou rindo, um pouco envergonhada. - Parece bobagem...
─ Não... Cantar nunca é bobagem...
─ Eu adoro o mar! - Aponta para as ondas - Minha mãe e protetora!
─ Ela te protege de que?
─ Das coisas ruins que podem acontecer!
─ Ela não deixa acontecerem coisas ruins?
─ Não! - sorrindo um riso de dentes brancos - Ela me dá força para vencer as dificuldades.
─ E você está em dificuldades agora? - Seus cabelos cheiravam plantas marinhas e sal. Era estranhamente bom.
─ Porque estaria?
─ Está sozinha numa praia com um estranho... Você não tem medo?
─ Não temo as criaturas da noite, Hamlet!
─ Hamlet?
─ É! Você é cheio dos por quês! Ser ou não ser...
─ Você é bastante estranha para sua pouca idade! - Provoquei outro sorriso branco. Sem me responder ela caminhou em direção ao mar. Antes de se perder em meio as ondas e a escuridão me falou num sussurro que poderia ensurdecer o mundo:
─ A eternidade que você irá viver eu já vivi!
Ouvi essa frase como uma música. Ela cantava para mim. Eu queria ir com ela para o fundo do mar, para os braços da rainha dos oceanos e saborear aquela felicidade. Mas eu sou um ser da noite e do ar. Voltei para minha casa de janelas e portas vedadas com o sol nos meus calcanhares e uma música que não deixava minha cabeça. A mais bela melodia que um mortal ou imortal poderia ouvir. Tive sonhos perturbadores com uma sereia de dentes muito brancos que sangrava na praia para alimentar sua criatura da noite. Toda a ira da senhora dos oceanos recaia sobre essa criatura amaldiçoada que se transformava em um tubarão condenado a singrar para sempre as profundezas escuras de um oceano infinito enquanto a sereia morena definhava na areia da praia deserta.
Acordei banhado em suor e com meu quarto cheirando a plantas marinhas e sal. Um cheiro estranhamente bom.

terça-feira, 4 de agosto de 2009

O PASSADO (PÁSSAROS DE SANGUE - AS HISTÓRIAS DO VAMPIRO LUCAS)

Passava da meia noite quando parei para comprar maçãs. Quem tem um hálito como o meu conhece todos os lugares que vendem maçãs nas horas mais impróprias. O dono da barraca de frutas me conhece, mas evita me olhar nos olhos. Apenas me passa as maçãs como quem vende algo proibido.
O programa desta noite prometia ser entediante. Uma vernissage apresentaria ao público o mais novo talento das artes plásticas. Tenho o hábito (ou seria vício?) de colecionar obras de arte. Acabo sendo convidado para esse tipo de festa. Na maioria das vezes enfadonhas. Tudo é muito polido. Muito educado. Não há transgressão. Uma arte limpa que me lembra hospitais. Apesar disso eu sempre vou. Pode ser que me engane e conheça alguém realmente genial. Meu humor era a única nuvem de chumbo no céu estrelado de novembro. O ar pesado de calor era bastante pegajoso mas minhas mãos insistiam em manter sua frieza habitual.
Entreguei meu convite na porta e fui acolhido com toda a amabilidade que se recebe um marchand. Olhei as péssimas obras de arte e cheguei a cogitar a idéia de queimar tudo e todos ali dentro.
¾ Lucas! Mas que prazer...
Parou abruptamente diante da fúria que era meu humor. Contive meus impulsos e ela continuou visivelmente contrariada.
¾ Que cara é essa! Não está gostando...
Balancei a cabeça discretamente. Ela deixou cair a máscara. Estava farta de tudo aquilo tanto quanto eu.
¾ Venha... Vamos tomar vinho! Talvez bebendo, essas drogas de quadros melhorem! Ah... Talvez seu humor melhore também... - Arrastou-me pelo braço e pude sentir seu adorável perfume que me trazia tantas recordações.
Maria era um oásis naquele festival de tolos. Uma mulher extraordinária. Dona de uma cultura invejável reunida durante seus muitos anos de estudos e viagens pelo mundo. Capaz de conversar sobre o melhor e o pior dos seres humanos com fina ironia. Ela sabia os tempos difíceis em que vivíamos, onde o gosto está deteriorado pela deusa cadela e pelo dinheiro. Os símbolos máximos da cultura ocidental nesse acidentado fim de século.
¾ Faz tempo que você não aparece! ¾ Olhou-me como quem aprecia uma tela estranha ¾ Não mudou nada. Nem uma ruga sequer!
Enchi nossos copos com o barulho de seu riso. Fiquei quase feliz.
¾ Você também está linda. São poucas as pessoas que conseguem manter a beleza com o passar do tempo.
¾ Eu sabia que a maldade era só uma máscara. Continua gentil!
¾ Você sempre foi uma grande amiga, uma das poucas que me restaram!
¾ Ainda se lembra? Nós vivemos como poucos! O mundo era uma interminável festa.
¾ Uma época romântica e bastante fútil também.
¾ Você sabia como tratar uma mulher e fazê-la sentir-se uma dama. Será que ainda resta um pouco do antigo charme?
¾ Admirando seus olhos ele pode voltar a qualquer momento.
¾ Adoraria que ele realmente voltasse.
Por um momento pude sentir a química. Herança de quando eu ainda me lembrava como era ser um homem de alma e corpo mortais. Não era a hora nem o lugar. Voltamos as amabilidades.
¾ Só que eu não sou mais tão jovem. Virei uma senhora respeitável e você continua um rapaz! Qual é o segredo?
¾ Minha fonte da juventude ainda não secou.
¾ Gostaria de poder beber desta fonte.
¾ Não, Maria. Você não iria gostar...
Ela olhou dentro dos meus olhos e pode ver minha alma.
¾ Talvez você tenha razão...
Brindamos a vida, ao passado glorioso de Maria e a um futuro com dignidade para nós. Voltamos aos convidados e à festa. Ela estava um pouco alta. O suficiente para aumentar aquele brilho no olhar que eu tanto desejara.
No meio das almas penadas estava o artista. Todos nós somos insignificantes, mas esse era pior. Era o insignificante astro rei. Pedante e afetado como uma burguesa decadente.
Maria me apresentou como seu maior comprador e muito interessado em novos talentos. Seus olhos mesquinhos reviraram de felicidade e ganância. Foi muito fácil seduzi-lo acenando com um grande futuro na Europa. Convidei-o para uma última taça de vinho. Como um ator em fim de carreira fiz meu papel de herdeiro perdulário. O jovem aprendiz de artista parecia deliciado em ser assediado por alguém aparentemente tão rico. A doce vulgaridade das convenções sociais. Eu não tinha a menor intenção de compartilhar nem mais um minuto daquela desagradável companhia. Levei-o por um tortuoso caminho e quando cheguei num lugar suficientemente tranqüilo parei o carro. O coitado achou que teria uma noite louca de prazer e em seguida venderia todos seus quadros para o seu novo amante. Ofereceu-me os lábios interesseiros e eu paguei com presas na sua jugular. O espanto foi maior que a dor, dando lugar ao medo imediato que as pessoas sentem diante do impossível.
Nem seu sangue, nem os gritos de agonia me deram prazer algum. Saciaram a fome apenas. Um jantar vulgar para um vampiro vulgar.
Limpei o sangue da boca e mordi a última maçã com uma tristeza imensa. Nostalgia do melhor da vida.
Fui bater na porta do passado. Maria me convidou para entrar e me recebeu em sua cama vinte e cinco anos depois da nossa primeira vez.
Seu apetite continuava como o de uma adolescente, seu sexo era sábio e ao mesmo tempo voraz. Sentir de novo seu amor foi um bálsamo. Sai furtivamente, antes do amanhecer, deixando Maria dormindo profundamente. Abandoná-la era sair de um mundo de sonhos que foi perdido e voltar para o pesadelo real. Há muita crueldade em viver para ver os amigos envelhecerem e desaparecerem. A imortalidade é uma doença como qualquer outra só que o paciente sempre sobrevive.