quarta-feira, 26 de agosto de 2009

AMOR E SANGUE (PÁSSAROS DE SANGUE - AS HISTÓRIAS DO VAMPIRO LUCAS)

Logo que entrei na festa pude sentir o seu cheiro. Fazia muito tempo que não me encontrava com outro. Esse tinha um odor adocicado de putrefação, uma suave podridão.
Já estava me preparando para sair. Não gosto de encontrar predadores noturnos. Foi a curiosidade, esse pecado que me faz sentir um pouco a minha humanidade perdida, que me prendeu aquele lugar.
Desvio meu olhar das pessoas. O cheiro esta mais forte. Passo por duas garotas que dançam sem tirar os olhos uma da outra. Uma delas é quem procuro. Não consigo identificar qual das duas. Talvez as duas.
Não sei direito o que fazer. Parecem tão lindas e felizes dançando.
Que direito tenho eu de entrar na vida dessas duas pessoas e a transformar num inferno maior do que elas já estão? ─ Me perguntava já sabendo a resposta. Estava fascinado. Seduzido por uma onda de amor que aquelas duas estranhas criaturas emanavam.
Sei que os demônios noturnos podem seduzir como mágicos. Conhecemos as fraquezas dos homens e possuímos os instintos necessários para dominar. Aquilo podia estar acontecendo e eu sabia, por experiência própria, que não seria bom para nenhuma das duas.
O que me fez realmente agir? Não consigo revelar nem a mim mesmo. Seria minha vontade de mudar o rumo de uma tragédia ou simplesmente a inveja de ver um ser da noite encontrar a felicidade enquanto eu vivo na solidão?
Comecei a dançar com as duas. Como já disse um vampiro sabe seduzir quando quer. Os olhos não se desviavam e nossas bocas e rostos se roçavam. Suas mãos deslizavam por meu corpo. O estranho prazer do toque desconhecido. Eu era apenas um brinquedo. E do que mais eu precisava?
Cris e Andréa. Estavam vivendo o melhor momento de suas vidas. Experimentando o amor e tantas outras coisas. Elas tinham um gosto especial por novidades e se soltavam no mundo. Pessoas especiais num mundo de medíocres. Tudo seria perfeito se uma delas não fosse uma imortal amaldiçoada.
Cris era doce e de olhar límpido. Tinha dezesseis anos e muita convicção. Nos atos parecia mais velha que Andréa que tinha dez anos a mais. Uma mulher bonita e carente. Creio que até Cris aparecer na sua vida devia ser alguém completamente perdida e entediada.
Andréa levantou-se para buscar mais alguma coisa para beber. Cris a olhou muito séria.
─ É o último... Prometo...
Ela se misturou com a multidão. Era a chance que eu esperava.
─ Deixa a garota beber! Você controla demais...
─ Você não conhece a Andréa! Ela bebia demais, se drogava demais e fazia besteira demais! Só estou tentando ajudá-la a colocar a vida no lugar.
─ Mas você não é muito nova para se envolver tanto com alguém?
─ E o amor tem idade? As coisas não são bem o que parecem...
─ Sei muito bem do que você esta falando.
─ Não, você não sabe!
─ Cris, eu sei muito mais do que você imagina...
A fisionomia da menina mudou radicalmente. Ela estava tensa. Podia vê-la lutando e procurando respostas nos seus sentidos. E a conversa tomou um rumo que eu não esperava.
─ O que você pretende? ─ Indagou-me Cris com um olhar feroz. Era uma loba defendendo seu território. Farejei o perigo iminente. Tentei contornar a situação e não me revelar.
─ Do que você está falando?
─ Não sei muito bem o que você é, mas não estou gostando! Então pare de brincar e me diga o que você quer!
─ Deixe-a partir!
─ O quê?
─ Você me ouviu. Liberte a Andréa! O que você está fazendo é perigoso para as duas.
─ Quem você pensa que é?
─ Você sabe que eu sou...
─ Seu estúpido arrogante! O que você sabe de minha vida! Não pode fazer isso comigo! Não pode querer tomar as minhas decisões!
─ Cala a boca! Você não sabe o que esta falando! ─ Gritei maldizendo minha presença ali. Não podia e não devia estar ali. Não era problema meu. A mágica do desejo foi rompida.
Não percebemos que Andréa já tinha voltado e nos olhava assustada.
─ Diga a ela! Conte tudo! Diga o que você é! Conte a ela dos pesadelos! Das vozes que você ouve e da fome! Vamos diga!
Andréa parecia ter dormido e entrado em um pesadelo.
─ Quem ele é, Cris?
─ Alguém como eu. Pode falar, ele sabe...
─ Ela me contou tudo. O que você está falando é verdade... A Cris tem se controlado...Nós nos protegemos dos outros e ela toma conta de mim!
Fiquei aturdido. Elas sabiam de tudo e conviviam com um segredo assustador.
─ Vocês são loucas! Sabem que não vão poder ficar juntas muito tempo!
─ Cada dia que passa me sinto menos humana!
─ Cris, me escute. Vai levar anos! Talvez séculos para você aprender a se controlar, enquanto isso o seu rastro será de ódio e destruição. Nós acabamos matando todos que amamos, isso aconteceu comigo. Mas o pior é quando aprendemos a nos controlar. Por que então enterramos todos que amamos até não sobrar nada. Só sangue e solidão.
Quem eu achava que era para separá-las assim? ─ Que merda eu estava fazendo. Minha vontade era ficar ali com as duas e me alimentar do seu amor. Uma outra forma de vampirismo.
─ Ele tem razão! Vá embora! Eu te amo demais pra te fazer mal!
─ Não!!! Eu não posso te perder! ─ As lágrimas corriam daquele rosto adorável enquanto Andréa abraçava sua amiga. Me senti um intruso.
─ Como eu vou viver sem você? Se é assim acabe logo com isso! Me faça alguém como você e assim nos amaremos para sempre!
─ Você não ouviu o que eu disse? Afastou-a segurando carinhosamente seu ombro. ─ Cada dia eu perco um pouco da minha humanidade. É o meu amor por você que me faz suportar as vozes e os pesadelos. Não resistirei por muito tempo. Imagine nós duas assim. O amor é humano, eu não!
─ Eu te darei forças! Nós venceremos...
Virou-se para mim e começou a me bater. Deixei que ela se acalmasse. Abracei-a e sussurrei no seu ouvido.
─ Pense nisso como uma doença. ─ Falava carinhosamente, como quem tenta explicar o inexplicável para uma criança. ─ Nós sofremos de um mal e nada pode nos salvar a não ser a luz do sol.
Afastou-se de mim. Olhou profundamente para nós dois.
─ Não adianta! A decisão já esta tomada. Vou ficar... Quando ela não puder controlar sua fome darei meu sangue até a última gota e ela vai sentir apenas o gosto do perdão e do meu amor.
─ Andréa...
─ Posso morrer por você mas ele tem razão, não posso viver uma vida que na verdade é pior que a morte! Prometa não me envenenar! Não quero ser como vocês!
Nunca mais vi as duas. Desapareci enquanto se beijavam. Será que o amor pode sobreviver a morte?
Sei muito bem como essa história termina. Alguém se sacrifica por seu amor e parte dessa vida. Para quem fica resta a solidão, o desespero e uma fome insana. Por fim o desprezo que todo ser da noite tem pela humanidade e uma eternidade para expiar os pecados.

quinta-feira, 20 de agosto de 2009

O TEMPO E A FUTILIDADE (PÁSSAROS DE SANGUE - AS HISTÓRIAS DO VAMPIRO LUCAS)

Há certas coisas que só uma cidade grande pode proporcionar. Um manto de asfalto que encobre as perversidades. Os crimes ficam sem solução. Um ser como eu pode se alimentar e se preocupar apenas com sua consciência. Ninguém perde tempo acreditando em vampiros com tantas outras coisas para se preocupar. A maldade anda solta na forma de homens comuns. Os seres da noite são reservados para os cantos escuros dos sonhos inofensivos.
Outra vantagem é que, até para um vampiro frugal com eu, a comida é farta e variada. Sempre se pode arrumar um pescoço ou um romance. Nunca as duas coisas. Nunca mato o que gosto. Mulheres interessantes, pessoas inteligentes, espíritos cativantes me dão maior prazer quando vivos.
Não é o caso dessa petulante moça que está ao meu lado e não parou de falar. Creio que vou ter uma indigestão ao morder tão verborrágica garganta. Ela parecia magnífica fazendo o show de striptease. Tão maravilhosa que eu só queria uma noite de amor e agora só quero matá-la. Uma megera de corpo bonito não vai fazer a mínima falta.
─ Vamos para o quarto! ─ Dizia e se esfregava como uma gata no cio. Você vai ver do que eu sou capaz...
Me desvencilhei de seu abraço de víbora. Na sacada pude respirar e minha sanidade foi voltando. O luar clareou meus pensamentos. Existia um castigo muito maior para a futilidade dessa mulher. Entrei no jogo:
─ Não posso! Não posso!! ─ Falava e balançava a cabeça como se alguma coisa me perturbasse.
─ Benzinho, você está com algum problema? Não há nada que eu não possa resolver!
Era o ápice da falsidade! O tom, o jeito de falar, tudo respirava vulgaridade.
─ Sofro de um mal incurável! ─ Falei olhando em seus olhos. Ela se afastou até uma distancia segura.
─ Você... Você não está com aids, está? ─ Olhou-me cheia de pavor.
─ Não, querida! É outro tipo de doença do sangue! ─ Provoquei uma pequena metamorfose que é muito mais um truque de sugestão. Meus olhos exalaram a maldade e se avermelharam e os caninos cresceram. Tudo muito parecido com os charmosos vampiros do cinema.
─ Você é um vampiro!! Um vampiro de verdade!! ─ Ela quase bateu palmas de contentamento.
Continuei com o teatro. A presa havia mordido a isca.
─ Não acredito!! Se meus olhos não...
─ Entende, agora por que não posso ir a lugar nenhum com você? Meu coração é uma fera pronta pra devorar o sangue de qualquer um!! E não quero que isso aconteça com você!
Me senti um perfeito canastrão. Como alguém podia acreditar em todas essas besteiras?
Ela aproximou o pescoço da minha boca e suplicou, quase num sussurro, que eu a mordesse e lhe desse a vida eterna. Imagine ficar eternamente jovem e linda!
─ Eternamente arrogante e vulgar! O mundo não precisa de mais
gente assim!
─ Como assim... Vulgar? Eu?
Indignação era o menor dos adjetivos! Mas até a sua fúria era frívola. Começou a gritar que iria falar para todos o monstro que eu era. Realmente, ninguém levaria a sério essa história de vampiro. Pensando bem, no sentido figurado até que ela tinha uma certa razão. Todos nós somos vampiros em determinadas ocasiões. O mundo está cheio de vampiros mais perigosos e mais famintos do que eu.
─ Pode falar o que você quiser! Só aumentará sua fama de infeliz...
─ Como pode haver alguém tão cruel?
─ Não sou pior nem melhor que você. Sofro de um mal que não me deixa envelhecer e você sofre do mal de envelhecer. Por ser essa pessoa superficial que você é não haverá dignidade nenhuma no passar dos anos, ao contrário só mostrará sua decadência e a patética luta contra a idade! ─ Continuei a hipócrita lição de moral. ─ Minha cara, o tempo pode ser invencível se você torná-lo seu inimigo.
O sermão fazia parte do jogo que já estava me saturando. A presa não oferecia a menor resistência. Muito pelo contrário, estava agora dramatizando. As lágrimas corriam estudadas e fartas pelo rosto, manchando a maquiagem.
Ganhei as ruas. Aparentava um pouco de pressa e afobação, mas nem tanto.
Não precisei esperar muito para ouvir o som dos saltos e o perfume caro me seguindo.
Depois a mesma velha história.
─ Por favor... Me transforme em alguém como você! Eu vou fazer trinta anos... Você sabe o que é fazer trinta anos pra uma mulher como eu? Não!! Você, não!!! Vai ficar aí com essa cara sem rugas por toda a eternidade! Você não sabe o que é ficar velho!! Eu não sei fazer mais nada e meu corpo não vai durar... preciso da eternidade! Faço o que você quiser!
Afinal ela tinha consciência das suas limitações ou estaria só tentando equilibrar jogo?
Nunca vou saber. Minha ira estava no ápice e explodiu. Arranquei sua roupa rasgando seu vestido. A possui ali mesmo, gemia debruçada sobre o capô do carro enquanto a segurava pelos cabelos e a penetrava com força e maldade.
─ Olhe para o seu rosto! ─ Eu a torturava fazendo com que ela se visse com a maquiagem borrada no vidro do carro! ─ Pensa na sua vida!! Você acha que os homens vão querer trepar com você pra sempre?
A penetrei por trás com violência e novamente arranquei lágrimas, desta vez de dor. Não gritou, mordia a própria mão até sangrar.
Deixei-a sobre o carro. Sumi na penumbra antes que ela pudesse se recuperar. Esse era o seu castigo! Eu acenei com a vida eterna e a condenei a envelhecer e ver sua própria imagem no espelho decaindo dia após dia.
Me senti cruel por ter me deixado levar por um prazer tão mesquinho. O que eu era senão um animal nojento, rastejando noite após noite atrás da minha vida perdida?
Bebi a taça de um vinho venenoso e amargo. A eternidade não me deu a sabedoria para poder perdoar e aprender a ter compaixão.
Eu estava enganado, nós não somos iguais. Eu sou muito pior.
Um dia sua agonia vai terminar, minha cara. Quanto a mim, não passo de um pássaro eterno manchado de sangue e de pecado.

sexta-feira, 14 de agosto de 2009

A FILHA DO MAR (PÁSSAROS DE SANGUE - AS HISTÓRIAS DO VAMPIRO LUCAS)

O mar se misturava com a noite no horizonte. A lua esparramava prata sobre sua superfície encrespada pelas poucas ondas de espuma branca. Apenas minha presença maculava a beleza daquela praia. Parei para admirar o oceano profundo e a moça morena que brincava em suas pequeninas ondas. Ela cantava docemente para sua mãe no mar. Iemanjá aquietava o mundo para ouvir sua filha. O vestido branco parecia feito de ondas que a brisa agitava levemente. Se agachava cantando e apanhando um pouquinho de água que escorria pelos seus braços morenos.
Esperei ela acabar e me aproximei. Me surpreendeu sua serenidade ao me ver.
─ Para quem você cantava?
─ Para a rainha do mar... - Me falou rindo, um pouco envergonhada. - Parece bobagem...
─ Não... Cantar nunca é bobagem...
─ Eu adoro o mar! - Aponta para as ondas - Minha mãe e protetora!
─ Ela te protege de que?
─ Das coisas ruins que podem acontecer!
─ Ela não deixa acontecerem coisas ruins?
─ Não! - sorrindo um riso de dentes brancos - Ela me dá força para vencer as dificuldades.
─ E você está em dificuldades agora? - Seus cabelos cheiravam plantas marinhas e sal. Era estranhamente bom.
─ Porque estaria?
─ Está sozinha numa praia com um estranho... Você não tem medo?
─ Não temo as criaturas da noite, Hamlet!
─ Hamlet?
─ É! Você é cheio dos por quês! Ser ou não ser...
─ Você é bastante estranha para sua pouca idade! - Provoquei outro sorriso branco. Sem me responder ela caminhou em direção ao mar. Antes de se perder em meio as ondas e a escuridão me falou num sussurro que poderia ensurdecer o mundo:
─ A eternidade que você irá viver eu já vivi!
Ouvi essa frase como uma música. Ela cantava para mim. Eu queria ir com ela para o fundo do mar, para os braços da rainha dos oceanos e saborear aquela felicidade. Mas eu sou um ser da noite e do ar. Voltei para minha casa de janelas e portas vedadas com o sol nos meus calcanhares e uma música que não deixava minha cabeça. A mais bela melodia que um mortal ou imortal poderia ouvir. Tive sonhos perturbadores com uma sereia de dentes muito brancos que sangrava na praia para alimentar sua criatura da noite. Toda a ira da senhora dos oceanos recaia sobre essa criatura amaldiçoada que se transformava em um tubarão condenado a singrar para sempre as profundezas escuras de um oceano infinito enquanto a sereia morena definhava na areia da praia deserta.
Acordei banhado em suor e com meu quarto cheirando a plantas marinhas e sal. Um cheiro estranhamente bom.

terça-feira, 4 de agosto de 2009

O PASSADO (PÁSSAROS DE SANGUE - AS HISTÓRIAS DO VAMPIRO LUCAS)

Passava da meia noite quando parei para comprar maçãs. Quem tem um hálito como o meu conhece todos os lugares que vendem maçãs nas horas mais impróprias. O dono da barraca de frutas me conhece, mas evita me olhar nos olhos. Apenas me passa as maçãs como quem vende algo proibido.
O programa desta noite prometia ser entediante. Uma vernissage apresentaria ao público o mais novo talento das artes plásticas. Tenho o hábito (ou seria vício?) de colecionar obras de arte. Acabo sendo convidado para esse tipo de festa. Na maioria das vezes enfadonhas. Tudo é muito polido. Muito educado. Não há transgressão. Uma arte limpa que me lembra hospitais. Apesar disso eu sempre vou. Pode ser que me engane e conheça alguém realmente genial. Meu humor era a única nuvem de chumbo no céu estrelado de novembro. O ar pesado de calor era bastante pegajoso mas minhas mãos insistiam em manter sua frieza habitual.
Entreguei meu convite na porta e fui acolhido com toda a amabilidade que se recebe um marchand. Olhei as péssimas obras de arte e cheguei a cogitar a idéia de queimar tudo e todos ali dentro.
¾ Lucas! Mas que prazer...
Parou abruptamente diante da fúria que era meu humor. Contive meus impulsos e ela continuou visivelmente contrariada.
¾ Que cara é essa! Não está gostando...
Balancei a cabeça discretamente. Ela deixou cair a máscara. Estava farta de tudo aquilo tanto quanto eu.
¾ Venha... Vamos tomar vinho! Talvez bebendo, essas drogas de quadros melhorem! Ah... Talvez seu humor melhore também... - Arrastou-me pelo braço e pude sentir seu adorável perfume que me trazia tantas recordações.
Maria era um oásis naquele festival de tolos. Uma mulher extraordinária. Dona de uma cultura invejável reunida durante seus muitos anos de estudos e viagens pelo mundo. Capaz de conversar sobre o melhor e o pior dos seres humanos com fina ironia. Ela sabia os tempos difíceis em que vivíamos, onde o gosto está deteriorado pela deusa cadela e pelo dinheiro. Os símbolos máximos da cultura ocidental nesse acidentado fim de século.
¾ Faz tempo que você não aparece! ¾ Olhou-me como quem aprecia uma tela estranha ¾ Não mudou nada. Nem uma ruga sequer!
Enchi nossos copos com o barulho de seu riso. Fiquei quase feliz.
¾ Você também está linda. São poucas as pessoas que conseguem manter a beleza com o passar do tempo.
¾ Eu sabia que a maldade era só uma máscara. Continua gentil!
¾ Você sempre foi uma grande amiga, uma das poucas que me restaram!
¾ Ainda se lembra? Nós vivemos como poucos! O mundo era uma interminável festa.
¾ Uma época romântica e bastante fútil também.
¾ Você sabia como tratar uma mulher e fazê-la sentir-se uma dama. Será que ainda resta um pouco do antigo charme?
¾ Admirando seus olhos ele pode voltar a qualquer momento.
¾ Adoraria que ele realmente voltasse.
Por um momento pude sentir a química. Herança de quando eu ainda me lembrava como era ser um homem de alma e corpo mortais. Não era a hora nem o lugar. Voltamos as amabilidades.
¾ Só que eu não sou mais tão jovem. Virei uma senhora respeitável e você continua um rapaz! Qual é o segredo?
¾ Minha fonte da juventude ainda não secou.
¾ Gostaria de poder beber desta fonte.
¾ Não, Maria. Você não iria gostar...
Ela olhou dentro dos meus olhos e pode ver minha alma.
¾ Talvez você tenha razão...
Brindamos a vida, ao passado glorioso de Maria e a um futuro com dignidade para nós. Voltamos aos convidados e à festa. Ela estava um pouco alta. O suficiente para aumentar aquele brilho no olhar que eu tanto desejara.
No meio das almas penadas estava o artista. Todos nós somos insignificantes, mas esse era pior. Era o insignificante astro rei. Pedante e afetado como uma burguesa decadente.
Maria me apresentou como seu maior comprador e muito interessado em novos talentos. Seus olhos mesquinhos reviraram de felicidade e ganância. Foi muito fácil seduzi-lo acenando com um grande futuro na Europa. Convidei-o para uma última taça de vinho. Como um ator em fim de carreira fiz meu papel de herdeiro perdulário. O jovem aprendiz de artista parecia deliciado em ser assediado por alguém aparentemente tão rico. A doce vulgaridade das convenções sociais. Eu não tinha a menor intenção de compartilhar nem mais um minuto daquela desagradável companhia. Levei-o por um tortuoso caminho e quando cheguei num lugar suficientemente tranqüilo parei o carro. O coitado achou que teria uma noite louca de prazer e em seguida venderia todos seus quadros para o seu novo amante. Ofereceu-me os lábios interesseiros e eu paguei com presas na sua jugular. O espanto foi maior que a dor, dando lugar ao medo imediato que as pessoas sentem diante do impossível.
Nem seu sangue, nem os gritos de agonia me deram prazer algum. Saciaram a fome apenas. Um jantar vulgar para um vampiro vulgar.
Limpei o sangue da boca e mordi a última maçã com uma tristeza imensa. Nostalgia do melhor da vida.
Fui bater na porta do passado. Maria me convidou para entrar e me recebeu em sua cama vinte e cinco anos depois da nossa primeira vez.
Seu apetite continuava como o de uma adolescente, seu sexo era sábio e ao mesmo tempo voraz. Sentir de novo seu amor foi um bálsamo. Sai furtivamente, antes do amanhecer, deixando Maria dormindo profundamente. Abandoná-la era sair de um mundo de sonhos que foi perdido e voltar para o pesadelo real. Há muita crueldade em viver para ver os amigos envelhecerem e desaparecerem. A imortalidade é uma doença como qualquer outra só que o paciente sempre sobrevive.