quarta-feira, 16 de março de 2011

O COMEÇO (PÁSSAROS DE SANGUE - A HISTÓRIA DO VAMPIRO LUCAS 1ª Parte)

Noite

O ano era 1933. Nessa época fugia de tudo. De uma guerra fratricida, das muitas mortes que carregava e de mim mesmo ou da coisa que eu havia me tornado. Ainda não tinha acostumado com minha nova condição sanguinária. As mortes que haviam ficado para trás eram fantasmas que me perseguiam onde quer que eu fosse, provocando pesadelos terríveis com as pessoas queridas que matei em nome da fome insaciável. Tempos difíceis em que acreditava nunca conseguir controlar o mal e a sede que me queimavam e me tornavam irracional. Sentia-me um desterrado em minha própria terra e procurei abrigo e fuga no interior de uma floresta. Jurei que nunca mais mataria outro ser humano. Passei a viver do sangue de animais que caçava durante a noite. Demorei para me adaptar ao novo tipo de alimento, vomitava constantemente e sentia uma fraqueza estranha, como se definhasse a cada dia. A falta de sangue estava me ressecando como uma planta sem água. Aquela dieta teria me destruído se o destino ou um estranho senso de direção que adquiri após minha primeira morte, não mostrasse a realidade cruel da minha nova natureza.

Era noite sem lua, ideal para a caça de pequenos animais noturnos ou, com sorte, um bezerro desgarrado. Andava pelos matos em andrajos, como um animal e me sentia como tal. Avistei a velha casa de pedra em uma clareira na floresta. Não havia nenhuma estrada ou picada que levasse diretamente aquele lugar. A antiga casa colonial parecia abandonada, suas velhas janelas permaneciam cerradas, a caiação estava descascada, tudo precisava de uma restauração urgente.
Meu primeiro impulso foi fugir dali. Poderiam morar humanos e minha fraqueza pelo sangue humano não conhecia limites. Alguma coisa inexplicável controlava meus passos. Me atraia para a clareira e para a casa. Era como voltar a um lar que nunca tive. Lembrando da história tempos depois imagino a casa como um ser vivo e pulsante, me chamando para seu interior escuro, úmido e acolhedor. Lentamente fui me aproximando, esquecido da fome, atravessei a sacada que contornava a casa e parei ante a porta de folha dupla. Desenhos estranhos estavam entalhados na madeira nobre contando uma história muito parecida com a minha. Uma história de humanos que se transformavam em animais e atacavam outros seres humanos. O final dos desenhos era terrível, os animais eram perseguidos e empalados pelos humanos e depois queimados em fogueiras. Uma expressão de agonia estampavam-se naqueles rostos desfigurados que pareciam ora morcegos ora lobos de caninos afiados. Não estava muito confortável com aquela história. Também não conseguia tirar os olhos daqueles tristes entalhes até que a madeira pesada rangeu nas dobradiças quando a empurrei.

Ao entrar naquela sala voltei 200 anos no tempo. Móveis robustos do século dezoito, muitas velas apagadas nos candelabros e no lustre antiquíssimo. A sala ampla com sofás e divãs de estofados rotos pela ação do tempo e das traças. Caminhei pelos tapetes que ainda preservavam muito da sua dignidade oriental. Um piano negro era a única peça que não acumulara pó. Alguém ali cuidava muito bem daquele magistral instrumento. Imaginei sua sonoridade ancestral. Fazia muito tempo que não ouvia música e olhando para o piano senti uma nostalgia que quase poderia se chamar dor. Fiquei tentado a tocar suas teclas. Não o fiz, não tinha idéia do que me aguardava naquela casa e não quis adiantar nenhum encontro. Atravessei uma ampla passagem em forma de arco que me levava a uma galeria de quadros apavorantes. Mesmo sem luz alguma eu podia ver como se fosse dia claro e o que vi podia assustar até um monstro como eu. Os retratos em tamanho natural de uma família aparentemente normal. O estranho era a maldade que exalavam aqueles rostos. O quadro que estava numa posição de destaque era de um jovem senhor de feições muito másculas. Um lustroso bigode sob o nariz aquilino dava-lhe um ar ao mesmo tempo selvagem e sedutor. Seus olhos eram terríveis. Nada poderia escapar-lhe, me lembrou uma águia. Sua postura era majestosa e arrogante própria de quem nada tem a temer. Perdi a noção do tempo naquela galeria macabra. Os quadros olhavam para mim e zombavam da condição a que me reduzi. Principalmente o majestoso quadro principal. Tenho certeza que ele estaria rindo se pudesse. Senti-me diminuído ante tantas figuras notáveis e assustadoras. Só notei a presença daquelas duas pessoas quando meus pensamentos foram interrompidos: “Você não acha que devemos preservar a memória de nossos antepassados?”
Se eu tivesse um coração teria se congelado ali mesmo. Um rapaz e uma mulher um pouco mais velha apareceram ao meu lado sem fazer ruído algum. Trajados como se fossem a uma festa elegante os dois me olhavam com complacência.
“Está é a galeria de meus parentes próximos e outros membros ilustres da família, hoje mortos. Dessa nobreza só restamos minha irmã e eu perdidos nesse fim de mundo.”
Fazia tempo que eu não conversava com ninguém e meu cérebro parecia um tanto atrofiado e o sotaque estranho do rapaz não ajudava a minha concentração. Não consegui dizer palavra alguma aquele desconhecido tão familiar.
“Na verdade estávamos esperando por você. Todos os sinais apontavam para sua direção e seu instinto não falhou em trazer-te até aqui”, meu anfitrião continuou a falar me deixando ainda mais confuso. Foi quando sua irmã correu em meu socorro: “Perdoe meu irmão!”, sorriu-me a jovem senhora e olhando com uma doce severidade para oirmão continuou, “há tempos não conversamos com ninguém e nos portamos mal! Você deve estar faminto e precisando de banho e roupas limpas. Podemos conversar depois, temos a noite inteira para isso!”
Estendeu-me sua mão fina como seda: “Primeiro as apresentações. Eu sou Bárbara e esse tagarela é meu irmão Herman.”
“Lucas...”, respondi desajeitadamente apertando sua mão fria, “...me perdoem!! Há muito que não falo com pessoas.”
Meus anfitriões riram prazeirosamente do meu esforço para voltar a falar. “Há tanto que você não sabe!! Há tanto por aprender!!”, disse-me Herman, “mas por hora vamos transformar você em alguma coisa apresentável para o jantar.”

Não sei por que me deixei levar. Talvez o cansaço e a fraqueza não me deixassem alternativas. Hoje relembro que eles me inspiravam confiança, um quase afeto. Imagine aquelas pessoas ali. Membros de uma nobreza decadente que se exilou longe de todos os seus entes queridos. Eles se pareciam muito comigo.
Bárbara me deu roupas antigas, muito limpas. Preparou-me o banho ela mesma jogando a água em uma banheira muito antiga de louça escura e pés dourados. Despiu-me cuidadosamente olhando as marcas que o tempo passado na floresta deixou em meu corpo, deliciando-se com minhas cicatrizes conquistadas durante a revolução. Tirou suas roupas mostrando um corpo esbelto e alvíssimo que destacava a boca vermelha, os cabelos e a púbis muito negras. Perdi algum tempo imerso na água morna, envolto no aroma dos sais enquanto ela massageava com mãos hábeis meu corpo maltratado. O cansaço foi dando lugar a uma enorme excitação, durante muito tempo eu esqueci que também era um homem. A possuí e fui possuído ali mesmo. Ela era muito versada na arte do amor e eu apenas um aprendiz. Não tinha a menor noção da força que os vampiros podem ter, muito menos nosso poder sexual intenso. Bárbara me falava sobre isso e como eu iria aprender com ela. Me sussurava, também, coisas sobre terríveis orgias sangrentas que me excitavam ainda mais. Me assustava gostar de ouvir coisas tão abomináveis a ainda querer mais e mais. Me fez mordê-la para sentir o poder de seu sangue negro misturado a um orgasmo, um prazer inimaginável.
Limpou o sangue que escorria da minha boca com um beijo e foi até o espelho. Pegou uma navalha, se colocou atrás de mim. Por um momento pensei que fosse meu fim. Engano começou a fazer minha barba com delicadeza, dizendo que era muito difícil para os vampiros se barbearem corretamente já que não são refletidos no espelho. A lâmina praticamente acariciava minha pele muito branca e sensível. Já fazia algum tempo que passei a não tolerar o sol. Feriu-me o rosto. Um pequeno corte na fronte esquerda de onde escorreu um pouco de sangue negro. Ela beijou-me a ferida e lambeu o sangue. Mostrou-me seus caninos e sussurrou: “Vista-se! O sexo nos dá um prazer maravilhoso, porém nos enfraquece muito! Precisamos nos alimentar.” Saiu da sala lânguida. Ainda lambendo o resto de sangue no canto dos lábios muito vermelhos.
Mais de setenta anos se passaram e ainda me lembro de cada detalhe daquela noite especial como se tivesse acontecido ontem. O jogo de sedução a que fui submetido. E o prazer intenso e o aprendizado que aquela vampira me proporcionava.

Quando voltei a sala de jantar me sentia um outro homem.
“Bárbara você realmente faz milagres!!”, disse Herman com um sorriso malicioso e os caninos a mostra. “Ele parece um outro homem!”. Voltando-se para mim: “Os humanos não satisfazem plenamente uma vampira e faz muito tempo que ela não via outro vampiro que não esse que vos fala...”. Lancei para Bárbara um olhar cheio de interrogações que ela respondeu: “Tudo a seu tempo!”
Foi à outra sala e voltou com nossa ceia. Uma menina metida nos seus trajes de dormir em estado de choque, apavorada demais até para gritar. Primeiro a despiram e quando percebi o que pretendiam tentei protestar. Os braços magros de Herman pareciam correntes e não me deixavam movimentos. Em segundos era tarde demais. As unhas afiadas de Bárbara cortaram a jugular da pobre. Eu via nos olhos da menina que ela sabia o seu destino e pude sentir todo o medo. Aquilo também era bom. Descobri que o medo acentuava o gosto do sangue, ao contrário das carnes que endureciam com esse tipo de sentimento. Ao ver o líquido vermelho escorrer perdi completamente o controle. Saltamos os três sobre aquele corpo frágil e a mordemos sugando todo o seu sangue.
Bárbara me mostrou onde morder a veia na virilha e sentir uma mistura de sangue e sexo. Herman gostava de pulsos e da dobra do braço, lugares que se encaixavam perfeitamente em sua boca. A cena era bizarra. Eu havia me transformado em um monstro. O cheiro de sangue aguçava uma fome insaciável e terrível que enlouquecia e só o líquido precioso poderia aplacar.
Sentamos por um momento, embriagados de sangue. Só então notei o quanto eu havia me enfraquecido sem o alimento necessário. Creio que se não tivesse encontrado aqueles dois eu teria perecido na floresta.
Herman foi o primeiro a se levantar. Tomou o corpo sem vida da menina como uma boneca velha e sumiu dentro da casa. Bárbara pegou minha mão e levou-me a sala. Sentou-se ao piano e começou a tocar divinamente. Era um tema de Smetana sobre o rio Moldava, belíssima canção que soava como saudades de casa. Ouvia a música podendo imaginar o grande rio cortando Praga e seguindo seu caminho pelo interior da Boêmia. O outro vampiro voltou e, em silencioso respeito, ouviu a linda canção até o final. Ouvia e via a música em suas várias partes. A história do grande rio cruzando seu caminho. Ora violento, ora tranqüilo. O nascer do sol nas suas margens e a noite chegando com seus murmúrios. As pessoas e a vida que se desenvolve em redor das suas águas. A festa de um casamento, a luz do sol dourando a calmaria das correntes.
As últimas notas e os harmônicos soavam pela casa enquanto permanecíamos de olhos fechados agarrados aquele momento de êxtase e querendo que ele durasse para sempre. Mas o sempre de um vampiro é tempo demais. Bárbara nos tirou do transe: “Nenhum outro compositor me faz tão feliz e tão triste como esse!”, continuou o seu monólogo como se nós não estivéssemos ali. “Feliz por me fazer lembrar da minha terra natal...e triste por estar distante a tanto tempo!”.
levantou-se do piano e foi sentar-se ao lado do irmão. Deram-se as mãos como dois namorados apaixonados e Bárbara me contou como Herman e ela chegaram até ali, tão longe de casa.
“Nós não somos vampiros como você, Lucas.” Começou o seu impressionante relato. “Fomos transformados pela magia dos livros de Abremelin.” Ante o meu espanto continuou. “Um mago negro chamado Eleazar chegou a Hungria no final do século quinze e de uma forma muito envolvente caiu nas graças do imperador Segismundo. Ele vinha de Veneza, mas foi no Egito que recebeu a orientação do próprio Abremelin para escrever o livro negro de Osíris, o deus dos mortos. Esses ensinamentos davam o poder de ressuscitar os mortos através de magia. Em Veneza Eleazar havia criado a primeira casta de vampiros na Europa. Mas na Hungria ele era conselheiro do próprio imperador e teve força política para criar a Ordem do Dragão. A maioria dos príncipes guerreiros do leste europeu entraram na ordem com a intenção de fortalecimentos político e bélico para combater os otomanos que povoavam as fronteiras e ameaçavam toda a cristandade.”
Eu ouvia tudo aquilo incrédulo mas fascinado. “Você está falando que os imperadores e príncipes cristãos estavam envolvidos com magia negra?”, perguntei envolvido com sua narração.
“O mundo mudou muito. Naquele tempo pertencer ao círculo de magia, assim como ser vampiro misturavam-se ao título de nobreza. Não era possível pensar em um nobre realmente nobre que não fosse das ordens do dragão ou da ave negra, e ambas eram fundamentadas na magia negra. Minha família, os Dráculas, os Bathorys e tantos outros eram membros das suas linhas e defendiam a cristandade com a força que o resto da Europa desconhecia. Foram essas pessoas que mantiveram o império turco na fronteira durante tanto tempo, mesmo com exércitos menores e menos equipados.”  continuou  “Herman e eu, nessa época, agíamos como duas crianças apaixonadas. O casamento entre parentes era muito comum e nós vivíamos nosso romance sem perceber as implicações disso.”
“Pouco tempo depois”, interrompeu Herman, “fui combater os turcos. A batalha estava perdida e eu caíra nas mãos dos inimigos quando Segismundo apareceu e me tirou das mãos da morte”.
“Ainda não éramos mortais.”, continuou. “Para mostrar meu agradecimento dei a mão de minha irmã como esposa para o imperador. Ela era a jovem mais bela da Europa e não poderia existir presente maior.”
“Claro que junto comigo iria um grande feudo muito cobiçado por todos”, Bárbara disse em tom de censura e continuou, “mas eu era muito jovem para entender o mundo masculino do poder. Sei que Segismundo me amava muito mas me senti traída pelo meu próprio irmão e me envenenei.”
“Bárbara teve um enterro magnífico em Gráz na alta Síria mas o imperador a amava tanto que usou os conhecimentos de Eleazar e seu livro para ressuscitá-la! Com a desculpa de transportar os restos mortais da amada para o castelo de Varazdin, ele conseguiu realizar os rituais em segredo.”, emendou Herman. Era uma história inacreditável. Aquela situação era completamente surreal. “Segismundo me ressuscitou para logo depois morrer, deixando ordens expressas para ninguém tentar tirá-lo do seu sono eterno. Ele viu o que seu amor fez comigo e não se perdoou jamais.”
“Então vocês foram transformados em vampiros através da magia e não do sangue?”, perguntei incrédulo.
“Não, somente a Bárbara e alguns nobres. Ainda não conhecíamos os efeitos da ressurreição e nem sabíamos que com ela viria a doença e a maldição. Bárbara foi acometida pela fome e tomou meu sangue, vendo que eu iria morrer ela cortou seus pulsos e me deu para beber também. Foi assim que começamos a descobrir juntos o mundo dos mortos que andam”.
“No começo tudo era uma imensa e boa novidade...”, Bárbara falava de olhos fechados como se deleitando com a s lembranças, “...éramos nobres e estávamos acima da lei, do bem e do mal. Podíamos nos abastecer de quanto sangue plebeu quiséssemos sem sermos incomodados.”
“Até que uma outra nobre também vampira resolveu atrair para suas orgias outros nobres. Uma parente distante da nossa família chamada Erzsébet Bathory. Por um tempo fora contida pelo seu marido chamado de Herói Negro devido a sua armadura, mas quando ele morreu a viúva se viu livre para todas as atrocidades. Matou mais de 600 pessoas e alguns nobres foram evolvidos quando o rei Mathias II cansou-se de protegê-la e mandou um outro nobre também vampiro para livrar-se do caso.”
“Quem foi encarregado de parar os desmandos da Condessa Bathory”, concluiu Bárbara, “...foi o terrível Conde Thurzo.” Ao ouvir esse nome dei um pulo da cadeira como se fosse um boneco de mola. “Você disse Conde Thurzo?”, perguntei afobadamente. “Conde Thurzo, conhecido entre nós como o vampiro carrasco. Ele era incumbido de acabar com os da própria raça. Um pária entre os mortos!”.
Joguei-me de volta a cadeira pesadamente, repetindo como louco: “Conde Thurzo, não pode ser!!” (continua...)