terça-feira, 4 de agosto de 2009

O PASSADO (PÁSSAROS DE SANGUE - AS HISTÓRIAS DO VAMPIRO LUCAS)

Passava da meia noite quando parei para comprar maçãs. Quem tem um hálito como o meu conhece todos os lugares que vendem maçãs nas horas mais impróprias. O dono da barraca de frutas me conhece, mas evita me olhar nos olhos. Apenas me passa as maçãs como quem vende algo proibido.
O programa desta noite prometia ser entediante. Uma vernissage apresentaria ao público o mais novo talento das artes plásticas. Tenho o hábito (ou seria vício?) de colecionar obras de arte. Acabo sendo convidado para esse tipo de festa. Na maioria das vezes enfadonhas. Tudo é muito polido. Muito educado. Não há transgressão. Uma arte limpa que me lembra hospitais. Apesar disso eu sempre vou. Pode ser que me engane e conheça alguém realmente genial. Meu humor era a única nuvem de chumbo no céu estrelado de novembro. O ar pesado de calor era bastante pegajoso mas minhas mãos insistiam em manter sua frieza habitual.
Entreguei meu convite na porta e fui acolhido com toda a amabilidade que se recebe um marchand. Olhei as péssimas obras de arte e cheguei a cogitar a idéia de queimar tudo e todos ali dentro.
¾ Lucas! Mas que prazer...
Parou abruptamente diante da fúria que era meu humor. Contive meus impulsos e ela continuou visivelmente contrariada.
¾ Que cara é essa! Não está gostando...
Balancei a cabeça discretamente. Ela deixou cair a máscara. Estava farta de tudo aquilo tanto quanto eu.
¾ Venha... Vamos tomar vinho! Talvez bebendo, essas drogas de quadros melhorem! Ah... Talvez seu humor melhore também... - Arrastou-me pelo braço e pude sentir seu adorável perfume que me trazia tantas recordações.
Maria era um oásis naquele festival de tolos. Uma mulher extraordinária. Dona de uma cultura invejável reunida durante seus muitos anos de estudos e viagens pelo mundo. Capaz de conversar sobre o melhor e o pior dos seres humanos com fina ironia. Ela sabia os tempos difíceis em que vivíamos, onde o gosto está deteriorado pela deusa cadela e pelo dinheiro. Os símbolos máximos da cultura ocidental nesse acidentado fim de século.
¾ Faz tempo que você não aparece! ¾ Olhou-me como quem aprecia uma tela estranha ¾ Não mudou nada. Nem uma ruga sequer!
Enchi nossos copos com o barulho de seu riso. Fiquei quase feliz.
¾ Você também está linda. São poucas as pessoas que conseguem manter a beleza com o passar do tempo.
¾ Eu sabia que a maldade era só uma máscara. Continua gentil!
¾ Você sempre foi uma grande amiga, uma das poucas que me restaram!
¾ Ainda se lembra? Nós vivemos como poucos! O mundo era uma interminável festa.
¾ Uma época romântica e bastante fútil também.
¾ Você sabia como tratar uma mulher e fazê-la sentir-se uma dama. Será que ainda resta um pouco do antigo charme?
¾ Admirando seus olhos ele pode voltar a qualquer momento.
¾ Adoraria que ele realmente voltasse.
Por um momento pude sentir a química. Herança de quando eu ainda me lembrava como era ser um homem de alma e corpo mortais. Não era a hora nem o lugar. Voltamos as amabilidades.
¾ Só que eu não sou mais tão jovem. Virei uma senhora respeitável e você continua um rapaz! Qual é o segredo?
¾ Minha fonte da juventude ainda não secou.
¾ Gostaria de poder beber desta fonte.
¾ Não, Maria. Você não iria gostar...
Ela olhou dentro dos meus olhos e pode ver minha alma.
¾ Talvez você tenha razão...
Brindamos a vida, ao passado glorioso de Maria e a um futuro com dignidade para nós. Voltamos aos convidados e à festa. Ela estava um pouco alta. O suficiente para aumentar aquele brilho no olhar que eu tanto desejara.
No meio das almas penadas estava o artista. Todos nós somos insignificantes, mas esse era pior. Era o insignificante astro rei. Pedante e afetado como uma burguesa decadente.
Maria me apresentou como seu maior comprador e muito interessado em novos talentos. Seus olhos mesquinhos reviraram de felicidade e ganância. Foi muito fácil seduzi-lo acenando com um grande futuro na Europa. Convidei-o para uma última taça de vinho. Como um ator em fim de carreira fiz meu papel de herdeiro perdulário. O jovem aprendiz de artista parecia deliciado em ser assediado por alguém aparentemente tão rico. A doce vulgaridade das convenções sociais. Eu não tinha a menor intenção de compartilhar nem mais um minuto daquela desagradável companhia. Levei-o por um tortuoso caminho e quando cheguei num lugar suficientemente tranqüilo parei o carro. O coitado achou que teria uma noite louca de prazer e em seguida venderia todos seus quadros para o seu novo amante. Ofereceu-me os lábios interesseiros e eu paguei com presas na sua jugular. O espanto foi maior que a dor, dando lugar ao medo imediato que as pessoas sentem diante do impossível.
Nem seu sangue, nem os gritos de agonia me deram prazer algum. Saciaram a fome apenas. Um jantar vulgar para um vampiro vulgar.
Limpei o sangue da boca e mordi a última maçã com uma tristeza imensa. Nostalgia do melhor da vida.
Fui bater na porta do passado. Maria me convidou para entrar e me recebeu em sua cama vinte e cinco anos depois da nossa primeira vez.
Seu apetite continuava como o de uma adolescente, seu sexo era sábio e ao mesmo tempo voraz. Sentir de novo seu amor foi um bálsamo. Sai furtivamente, antes do amanhecer, deixando Maria dormindo profundamente. Abandoná-la era sair de um mundo de sonhos que foi perdido e voltar para o pesadelo real. Há muita crueldade em viver para ver os amigos envelhecerem e desaparecerem. A imortalidade é uma doença como qualquer outra só que o paciente sempre sobrevive.

Um comentário:

  1. E ai Cavalo ! ! !
    Estou aqui pra prestigiar seu espaço ! ! !
    Gostei muito dos textos ... parabéns ...

    Sucesso cara ! ! !

    Abraços ...

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